Se tudo o que se sente e vive fosse susceptível de explicação (através de palavras), eu não seria eu.
Eu sou aquilo que todos conhecem, mas também sou aquilo que não dou a conhecer...

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Estava vazio...


Miguel acordou. Ergueu a cabeça que repousava nos braços cruzados e caídos sobre a mesa e, num ímpeto, todo o seu corpo tomou a mesma atitude. Vertical, digno, pronto para o combate. Sobre a mesa, apenas um copo que ficara esquecido. Estava vazio...
Não se lembrou imediatamente do que o levara àquilo, mas imagens se tornam nítidas, a cada segundo. A mulher mais nova que o atraira, que o levara para o caminho que desejava afastar, a ilusão que percorrera. Tal como acontecia nos jogos de adolescência, nesta fase também vira piscar o "WRONG WAY" no meio do ecrã da sua vida.
Não foi correcto. Envolveu-se demais. Não demais o suficiente para não conseguir voltar atrás, mas demais.
Deu passos. Numa direcção conhecida mas vaga, cambaleante devido ao líquido que (supunha ele) estivera, horas antes, no copo vazio.
Uma porta entraberta abriu-se com o toque dos seus dedos, fazendo aparecer, do outro lado, a imagem daquela cama onde se deleitou tantos anos com a pessoa amada. A idade fê-los envelhecer um pouco, é certo... Mas, ao vê-la dormir, recordou tudo o que fizeram um pelo outro, tudo o que juraram nos tempos de juventude. Recordou que o olhar doce, cor de mel, que o fez apaixonar-se perdidamente, continua igualzinho. Apenas o salientam, ainda mais, duas ou três rugas de expressão, cavadas na pele pelas brincadeiras dos dias quentes e pelas cumplicidades dos dias mais enregelados.
- Fui um estúpido. - disse ele, baixinho.
Deitou-se na cama, ainda vestido.
E ela, mantendo os olhos fechados, fingindo dormir, deu meia volta na cama e abraçou-o, como se em sonhos o estivesse a fazer.
A discussão do dia anterior tivera ido longe demais. Tudo o que disseram fora longe demais. Mas era necessário.
Ela, agora, sabe que deve perdoar, que deve esquecer. Está cheia de amor para dar.
Mas Miguel estava vazio como o copo que ficara na mesa. Porque fez chorar, pela primeira vez, o seu grande amor.
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Texto para a Fábrica de Letras (n.º 16 do Desafio de Junho de 2010).

12 comentários:

  1. Que lindo! Adorei mesmo muito. Parabéns!!!

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  2. :)

    Que querida...

    Obrigada, Lady Me... :)

    Beijinho grande*

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  3. D. R.,
    o perdão tem grande chance contra os vazios.
    É preciso, no entanto, muito zelo ao usá-lo.
    Às vezes amontoamos erros demais, com carga que vai além do tanto que pode o perdão.
    E aí o vazio vence.

    Belo texto.

    Beijos.
    Ricardo

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  4. Ainda foi a tempo; muitas vezes já não se consegue.

    bonito.

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  5. às vezes ficar vazio pode ser reflexo de que precisamos que nos encham, neste caso, de amor que transborda no outro copo.

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  6. Olá flor!!! Bom dia!

    Que texto mais fofo e delicado ... nossa amei!!!
    Perdão e culpa ... no fim o amor vence sempre!

    beijos linda e ótima semana

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  7. Crueldade pura!
    O sexo não é racional e o sentimento de culpa sobrepôe e estraga qualquer prazer.Ela está acostumada a perdoar. E se houver inversão?

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  8. eu AMO tudo q leio aki... sempre me enriquece...

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  9. Olá =)

    Este teu texto está lindíssimo ...

    Perdoar nem sempre é fácil mas um erro não deveria apagar todos os momentos bons de um relacionamento... por vezes esse acontecimento sobrepõe-se sobre todos os outros.

    Beijo ***

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