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Ouviu risos, seguidos de murmúrios... De novo, risos.
Instantaneamente, os seus olhos de cor esmeralda abriram mais. Não só para se habituar à fraca luminosidade daquela parte da casa que era mais velha e escura, mas também para tentar compreender como o riso tivera voltado tão cedo àquele lugar.
Entrara na casa sem se anunciar, sem bater, sem pressionar o botão que acciona a campainha. Entrara, simplesmente. Hábito que, sem saber, mantinha desde a infância, desde que aquela era também a sua casa.
Seguiu o caminho indicado pelos móveis comidos e gastos do corredor. Ao fundo, LUZ.
Ao embrenhar-se na luz que embebia a sala, viu o que nunca esperara ver. Mas, sobretudo, viu o que preferiria não ter visto.
Em silêncio, e sem que a vissem, abriu a mala branca que trazia consigo. Queria encontrar a arma, mas não conseguia.
- Por que raio temos nós de ter malas tão grandes? - pensou, irritada.
O estojo de maquilhagem caiu e elas olharam.
- Fui vista. - constatou.
Mas antes que pudessem gesticular ou verbalizar algo, Daniela DISPAROU.
Sabia que não estava correcto. Que matar não era uma prática que aprovasse. Ou, pelos vistos, que aprovasse em circunstâncias ditas normais.
Mas estava fora de si. E, além disso, gostou.
Gostou, sobretudo, de ver o seu reflexo no olhar frio e sem expressão das duas: da que amava e da que odiava; da que era sua confidente e da que era o motivo das confidências.
Se de uma esperava tudo, da outra esperava nada. E a primeira foi quem a desiludiu, foi quem amarrotou a amizade que as unia. A primeira foi a primeira que ela matou.
Roubou-lhes o olhar e manchou as mãos com o sangue. Agora, velhinha, Daniela já lavou as mãos mais que mil vezes. Ninguém parece reparar na mancha de sangue, ninguém parece vê-la. Mas ela nunca deixou de a ver, nunca a conseguiu atenuar.
E os olhos das duas continuam a espiá-la. E os risos continuam a assombrá-la.
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Texto para a Fábrica de Letras (n.º 2 do Desafio de Julho de 2010).
Lindo e forte teu texto e participação!beijos,chica
ResponderEliminarO sangue, quente, que uma única vez mancha as mãos é sugado pelo olhar, frio, e a partir deste momento passa a habitá-lo:
ResponderEliminar"Ninguém parece reparar na mancha de sangue, ninguém parece vê-la. Mas ela nunca deixou de a ver, nunca a conseguiu atenuar."
Belíssimo conto!
Beijos,
Ane
Intenso.
ResponderEliminarO problema nem é tanto matar, mas sim viver com as consequências.
ResponderEliminarBem escrito. ;)
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O que quer que ela procurasse quando disparou a arma... parece nunca ter conseguido encontrar.
ResponderEliminarBoa participação.
Há segredos nas vidas das pessoas que nunca as deixam de atormentar... gostei muito.. bjs
ResponderEliminarE o coração também tende a disparar ao caminhar por essas linhas. Ótima participação.
ResponderEliminarFez-me lembrar: "O que fazemos na vida, ecoa na eternidade"
Beijos
ESTOU TAMBÉM PARTICIPANDO...
ResponderEliminarUM TEMA BELO, MAS QUE PARA MIM É TRISTE. REGISTREI NA INTERAÇÃO A MINHA TRISTEZA PELOS DISPAROS. A VIDA É UMA INCOGNITA. ASSIM COMO NA CURIOSA..DEIXO O REGISTRO NA INTERAÇÃO..
http://sandrarandrade7.blogspot.com/
UM GRANDE ABRAÇO AMIGA.
SANDRA
uau, que texto forte, drástico. matamos com as palavras o que nos apetece matar com o coração. gostei do teu "regresso".
ResponderEliminarjá disse que adoro esta música?
Gostei muito da tua participação. Viver com culpa não é fácil. Já ando por cá.
ResponderEliminarobrigada por teres deixado a tua frase. olha, eu contei 76 palavras. não é muito grave, o limite de 50 palavras é só para se orientarem. mas se quiseres alterar, estás à vontade, eu publiquei ^^
ResponderEliminarbeijinho, querida.
Querida Girl in Motion, já deixei a minha participação rectificada. :)
ResponderEliminarSei que é uma questão de orientação, mas eu gosto de cumprir estas coisas à risca. :)
Não sei bem a que música te estás a referir. Mas imagino que à "Forgive Me" dos Evanescence. Não me canso de ouvi-la.
Aliás, é a minha banda favorita.
Beijinho.
sim, é essa :D
ResponderEliminare obrigada, então!!
muito boa noite. ou madrugada *
Um conto bem estruturado e que nos prende logo no primeiro parágrafo.
ResponderEliminarGostei bastante, principalmente a mensagem final.
Bjos
Fê
Você sabe ser cruel quando manuseia as palavras. Belo texto.
ResponderEliminarAbraços.
A humilhação é um gatilho poderoso.
ResponderEliminarBeijo