Se tudo o que se sente e vive fosse susceptível de explicação (através de palavras), eu não seria eu.
Eu sou aquilo que todos conhecem, mas também sou aquilo que não dou a conhecer...

quinta-feira, 1 de julho de 2010

Disparou

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Ouviu risos, seguidos de murmúrios... De novo, risos.
Instantaneamente, os seus olhos de cor esmeralda abriram mais. Não só para se habituar à fraca luminosidade daquela parte da casa que era mais velha e escura, mas também para tentar compreender como o riso tivera voltado tão cedo àquele lugar.
Entrara na casa sem se anunciar, sem bater, sem pressionar o botão que acciona a campainha. Entrara, simplesmente. Hábito que, sem saber, mantinha desde a infância, desde que aquela era também a sua casa.
Seguiu o caminho indicado pelos móveis comidos e gastos do corredor. Ao fundo, LUZ.
Ao embrenhar-se na luz que embebia a sala, viu o que nunca esperara ver. Mas, sobretudo, viu o que preferiria não ter visto.
Em silêncio, e sem que a vissem, abriu a mala branca que trazia consigo. Queria encontrar a arma, mas não conseguia.
- Por que raio temos nós de ter malas tão grandes? - pensou, irritada.
O estojo de maquilhagem caiu e elas olharam.
- Fui vista. - constatou.
Mas antes que pudessem gesticular ou verbalizar algo, Daniela DISPAROU.
Sabia que não estava correcto. Que matar não era uma prática que aprovasse. Ou, pelos vistos, que aprovasse em circunstâncias ditas normais.
Mas estava fora de si. E, além disso, gostou.
Gostou, sobretudo, de ver o seu reflexo no olhar frio e sem expressão das duas: da que amava e da que odiava; da que era sua confidente e da que era o motivo das confidências.
Se de uma esperava tudo, da outra esperava nada. E a primeira foi quem a desiludiu, foi quem amarrotou a amizade que as unia. A primeira foi a primeira que ela matou.
Roubou-lhes o olhar e manchou as mãos com o sangue. Agora, velhinha, Daniela já lavou as mãos mais que mil vezes. Ninguém parece reparar na mancha de sangue, ninguém parece vê-la. Mas ela nunca deixou de a ver, nunca a conseguiu atenuar.
E os olhos das duas continuam a espiá-la. E os risos continuam a assombrá-la.
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Texto para a Fábrica de Letras (n.º 2 do Desafio de Julho de 2010).

16 comentários:

  1. Lindo e forte teu texto e participação!beijos,chica

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  2. O sangue, quente, que uma única vez mancha as mãos é sugado pelo olhar, frio, e a partir deste momento passa a habitá-lo:

    "Ninguém parece reparar na mancha de sangue, ninguém parece vê-la. Mas ela nunca deixou de a ver, nunca a conseguiu atenuar."

    Belíssimo conto!

    Beijos,
    Ane

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  3. O problema nem é tanto matar, mas sim viver com as consequências.

    Bem escrito. ;)

    *

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  4. O que quer que ela procurasse quando disparou a arma... parece nunca ter conseguido encontrar.

    Boa participação.

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  5. Há segredos nas vidas das pessoas que nunca as deixam de atormentar... gostei muito.. bjs

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  6. E o coração também tende a disparar ao caminhar por essas linhas. Ótima participação.

    Fez-me lembrar: "O que fazemos na vida, ecoa na eternidade"

    Beijos

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  7. ESTOU TAMBÉM PARTICIPANDO...
    UM TEMA BELO, MAS QUE PARA MIM É TRISTE. REGISTREI NA INTERAÇÃO A MINHA TRISTEZA PELOS DISPAROS. A VIDA É UMA INCOGNITA. ASSIM COMO NA CURIOSA..DEIXO O REGISTRO NA INTERAÇÃO..
    http://sandrarandrade7.blogspot.com/

    UM GRANDE ABRAÇO AMIGA.
    SANDRA

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  8. uau, que texto forte, drástico. matamos com as palavras o que nos apetece matar com o coração. gostei do teu "regresso".

    já disse que adoro esta música?

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  9. Gostei muito da tua participação. Viver com culpa não é fácil. Já ando por cá.

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  10. obrigada por teres deixado a tua frase. olha, eu contei 76 palavras. não é muito grave, o limite de 50 palavras é só para se orientarem. mas se quiseres alterar, estás à vontade, eu publiquei ^^

    beijinho, querida.

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  11. Querida Girl in Motion, já deixei a minha participação rectificada. :)

    Sei que é uma questão de orientação, mas eu gosto de cumprir estas coisas à risca. :)

    Não sei bem a que música te estás a referir. Mas imagino que à "Forgive Me" dos Evanescence. Não me canso de ouvi-la.
    Aliás, é a minha banda favorita.

    Beijinho.

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  12. sim, é essa :D

    e obrigada, então!!
    muito boa noite. ou madrugada *

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  13. Um conto bem estruturado e que nos prende logo no primeiro parágrafo.
    Gostei bastante, principalmente a mensagem final.
    Bjos

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  14. Você sabe ser cruel quando manuseia as palavras. Belo texto.
    Abraços.

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  15. A humilhação é um gatilho poderoso.
    Beijo

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